Marketing ou burrice? O cervejeiro dentro de mim quer acreditar na primeira alternativa!
Por que eu falo isso? Porque desde criancinhas nós cervejeiros caseiros aprendemos que cervejas acima de 100 IBU´s são praticamente impossíveis. Se nós cervejeiros caseiros sabemos disso, então os profissionais não deixariam um rótulo desse ser impresso. A não ser que seja marketing. A não ser que seja para chamar atenção. A não ser que...
A nova cerveja a ser lançada pela Cervejaria Invicta é uma Imperial IPA com 8% de álcool, cujo estilo realmente prega amargor bastante elevado. De fato o marketing pode ter levado à criação do rótulo. Veja bem, se eu fui inspirado a escrever uma postagem no blog apenas por causa dos 1000 IBU´s, então pode-se dizer que o marketing já funcionou. Mas à troco de quê?
Sabemos que IBU´s (International Bittering Units) são unidades de amargor absolutas, isto é, valem para qualquer volume, qualquer OG, qualquer açúcar residual, etc. São medidas em mg de iso-alfa ácidos por litro de cerveja. São medidos principalmente por dois métodos: espectrofotometria UV (extração com solvente isooctano e depois letura da absorção em 275nm) ou por cromatografia líquida de alta eficiência (CLAE em português ou HPLC em inglês). Como para a maioria das microcervejarias os equipamentos dessas técnicas não são prioridade, usam de fórmulas de estimativa para IBU´s.
Uma medida aproximada para amargor que nunca pegou aqui no Brasil, mas que nos EUA era muito usada nos primórdios da cerveja caseira são as AAU´s (Alfa Acid Units), em que se multiplicava a quantidade de alfa ácidos de determinado lúpulo por sua massa (no sistema deles, massa em onças). Era necessário, portanto, além desse número resultante da multiplicação, informar o tempo da adição: 60 minutos, 30 minutos, 5 minutos, etc. Nessa fórmula, adicionar 10g de lúpulo com 10% de alfa ácidos é o mesmo que adicionar 20g de lúpulo com 5% de alfa ácidos. As AAU´s assumem uma leva padrão do cervejeiro caseiro de 19L.
O ponto fraco dessa fórmula é justamente esse: os cervejeiros caseiros não fazem mais apenas levas de 20L¹. Além disso, a comparação é bem mais difícil. Portanto, hoje utiliza-se quase que no mundo todo IBU´s como medida universal de amargor. A equação para determinação de IBU´s é a seguinte:
onde AA=α-ácidos, m=massa, U=utilização, V=volume final da fervura.
Utilização pode ser descrito como a medida da eficiência da conversão dos alfa ácidos para os iso-alfa ácidos, ou medida de eficiência de isomerização. Esse número é super importante e é onde todas as
diferenças de cálculos (e de equações) ocorrem, já que as outras variáveis facilmente medidas. Varia geralmente de 0 a 35%, e inúmeros são os fatores que o afetam. Por exemplo:
- Pellets geralmente tem maior utilização que lúpulo em flor
- Tempo de fervura
- Densidade do mosto
- Agitação do mosto: intensidade da fervura, material e medidas das panelas, localização do elemento de aquecimento
- Tempo de permanência do mosto após a fervura (e antes do resfriamento)
- Agitação do mosto após a fervura: se for feito whirlpool do mosto com lúpulo, haverá ainda alguma isomerização significativa.
- Perdas durante a fermentação: as leveduras absorvem amargor. A taxa com que absorvem depende de inúmeros fatores.
Todas essas variáveis geram diferentes fórmulas de estimativa. As mais populares são Tinseth, Rager e Garetz (com os sobrenomes dos autores)². Algumas dessas variáveis são mais fáceis de serem medidas (e levadas em conta) do que outras. Algumas dessas variáveis são praticamente impossíveis de se quantizar. E por conta de tudo isso as estimativas usadas podem gerar resultados absurdamente fora do valor real.
Portanto, quando um cervejeiro falar "essa cerveja tem tantos IBU´s" a pergunta que se faz de volta é "qual laboratório fez a medida?" E como aqui no Brasil virtualmente NINGUÉM faz medida em laboratório, ficamos sem parâmetro algum, apenas acreditando na palavra da cervejaria, acreditando na estimativa que o cervejeiro usou. Não sabemos qual equação ele usou. Não sabemos qual a diferença entre a medida real (de laboratório) e a estimada pelo cervejeiro (por uma fórmula qualquer). Isso porque nem adicionamos aqui as variáveis sensoriais, onde uma cerveja com OG mais alta ou atenuação mais baixa ou mais açúcar residual tem percepção de menos amarga do que uma cerveja de OG mais baixa ou atenuação mais alta ou menos açúcar residual.
Uma última consideração a ser feita sobre o amargor na cerveja: não importa se temos uma utilização baixa ou alta (no intervalo citado entre 0 e aproximadamente 35%), as equações de estimativa acima citadas permitem valores infinitos de IBU´s. Elas não levam em conta o fato de haver um nível máximo de solubilidade de iso-alfa ácidos no mosto. Esse nível é de aproximadamente 100mg/L ou 100 IBU´s.
O que me faz lembrar de um
reality show onde 3 cervejeiros caseiros foram até a Universidade de California-Davis e foram desafiados a brassar uma cerveja de OG 1.070+ com mais de 100+ IBU´s. Cada um com seu equipamento piloto de 20L e insumos à vontade. As cervejas foram depois analisadas em laboratório e tiveram os valores de IBU´s, OG e ABV determinados. Todos os 3 cervejeiros falharam miseravelmente. Um teve OG de 1.072 e 87,5 IBU´s, outro OG: 1.072 e 84,6 IBU´s , e o terceiro com OG: 1.068 e 94,3 IBU´s³. Quando perguntado sobre os tais 100 IBU´s, o técnico de laboratório respondeu com: "É algo como um limite teórico, é quase impossível de se atingir."
Aí vem gente afirmando que a cerveja tem 1000 IBU´s, jogando pela janela um conceito que é bem conhecido pela maior parte da comunidade cervejeira. Cria uma falsa idéia do lúpulo apenas com a função de dar amargor para a cerveja. E o pior, cria precedente para outros cervejeiros fazerem de novo. A não ser que...
O que se pode fazer? Na minha opinião duas coisas me vêem à mente:
- A cervejaria (ou até o cervejeiro caseiro) pode mandar sua cerveja para análise e comparar o resultado de IBU´s determinado em laboratório com o estimado por fórmulas. A partir daí ele pode escolher a equação que melhor representa o valor determinado. Pode também fazer análises em relação a determinadas variáveis (mantendo todas as outras fixas) e ajustar a utilização na fórmula de IBU´s.
- Não custa fazer uso da notação já usada por muita gente de "100+ IBU´s", denotando que se tem saturação de iso-alfa ácidos ou que a equação de estimativa gerou um número maior. Ou ainda colocar o termo "(calculados)" após o valor acima de 100 IBU´s. Esse é o melhor jeito de informar o consumidor sobre as características da cerveja e educá-lo caso ele venha a questionar essa notação.
E por fim: claro que fazer cerveja tanto é arte como ciência. No final das contas acertar os IBU´s não é o objetivo principal de nenhuma cerveja ou cervejaria. O balanço de amargor deve ser ajustado sensorialmente, pelo lado da 'arte'. O melhor sabor é o objetivo final. Painéis sensoriais devem ser mais importantes do que instrumentos de laboratórios.
¹ Confraria do galão, por exemplo, é uma associação de cervejeiros que fazem levas de 5L. E já existem muitos cervejeiros caseiros produzindo levas de 100L ou maiores
² Fiz um experimento muito interessante no software de produção de cervejas Beersmith: uma simulação de cálculo de IBU´s com parâmetros fixos das variáveis (10%AA, 60 minutos de fervura, 30g de lúpulo, 28L volume inicial de fervura, 22L volume final e 1.050 densidade) pelas 3 fórmulas diferentes. Tinseth deu valor de 34,5 IBU´s, Rager deu 44,8 IBU´s e Garetz deu 28,1 IBU´s. A maior variação possível, nessa simulação, chega a ser de 37%.
³ Os principais fatores que afetam a utilização são o tempo de fervura e a densidade do mosto. Não é à tôa que a menor OG desses 3 cervejeiros caseiros gerou o maior valor de IBU. O dono da cervejaria Russian River, Vinnie Cilurzo, depois de ter lançado uma double IPA chamada "Pliny The Elder", pensou inicialmente em fazer uma outra cerveja mais extrema ainda justamente levando em conta esse fato. Tinha pensado em abaixar a OG para que o amargor pudesse ser maior. Depois refugou a idéia, e criou a "Pliny The Younger" . Do mesmo jeito, os cervejeiros da Brewdog produziram cervejas de baixo ABV e muitos IBU´s. Apenas o valor calculado de IBU´s foi revelado, com uma versão da "Nanny State" a 1,1%ABV e 225 IBU´s (calculados) e uma imperial mild chamada "How to Disappear Completely" com 3,5% ABV e 198 IBU´s (calculados)
OBS: A cervejaria Mikkeller também produziu uma cerveja de 1000 IBU´s. Talvez daí tenha saído a inspiração da Invicta. Eles receberam críticas pesadas e responderam "Nós sabemos a diferença entre valor teórico e valor medido e nunca dissemos ter produzido uma cerveja com valor real de 1000 IBU´s". Minha opinião é a de que no momento que você coloca no rótulo estampado em letras garrafais "1000 IBU" está no mínimo confundindo o consumidor.